Conto: Loucura

Cidade de Westminster, Londres, 24 de outubro de 2002, Trafalgar Square

Seu nome era Lisandra Sunshine, mas todos a chamavam apenas de Lisi. Ela afirmava ser maior de idade e seu corpo de mulher a ajudava, mas com apenas 15 anos já era viciada em heroína e maconha, estando a um passo de consumir algo mais perigoso. Já era próximo das duas da manhã quando ela e Joshua, um carinha legal que vendia barato em troca de “algo mais”, estavam começando a preparar da droga que os levaria para o “céu e inferno” ao mesmo tempo. Era a primeira vez que Lisi iria consumi-la, e sua empolgação estava potencializada com o êxtase que tinha consumido durante a festa.

Durante a madrugada a praça era tranqüila e sem guardas visíveis, mas o destino fez com que logo naquela noite, sem chuva, dois policiais aparecem por lá. Os jovens estavam escondidos, mas perigosamente tentando ascender um isqueiro e fazer uma droga mal cheirosa queimar numa colher surrada. Lisi estava alucinada querendo o novo “bagulho”, mas Joshua estava temeroso com a presença policial.

– Lisi, vamos sair daqui! Se esses caras nos pegam, tamo fudidos! – falou com medo na voz.

– Deixa de ser viado Jô! – falou ela sem nem se importar – Bota pra queimar! Aquela vadia da Nancy disse hoje que engolia cinco desses numa noite. Quero ver o que ela vai dizer quando eu cheirar 7!

– Ela vai dizer que você já foi tarde! – respondeu irritado – Porque a única coisa que você vai ganhar com isso é um cobertor bem fofinho de terra! Sete palmos. Ou o calor de uma fornalha, dependendo do que seus pais vão querer.

– Bora, põe pra queimar! – falou ela mais alto, chamando a atenção dos guardas.

Os policiais olharam em volta a procurado da fonte do som, enquanto que os dois jovens ficaram quietos e encolhidos, como dois ratos acuados. Um deles sacou uma lanterna e iluminou os cantos escuros mais próximos, mas nada de passar perto de onde os jovens estavam. Evidentemente que a distância não permitia eles sentirem o cheio da droga, mas uns dez passos seriam suficientes para encontrar o esconderijo só pelo olfato. Para o temor de Joshua, o guarda com a lanterna deu um passo adiante… e outro… e outro, mas então parou quando ouviu seu amigo chamar. O jovem os observou durante um tempo tentando compreender o que conversavam e para o que apontavam do outro lado da praça, enquanto que Lisi só observava o fecho de luz da lanterna, hipnotizada, indo pra lá e pra cá a procura de algo. Os guardas sacaram suas armas.

– Alto! – falou o com a lanterna – Mãos para o alto e largue a sua arma!

Quem quer que fosse estava fudido, pensou Joshua. Mas algo inexplicável aconteceu. De repente o guarda com a lanterna não estava lá, como se nunca tivesse existido, e no instante seguinte ressurgiu caindo no chão, ou pelo menos parte dele. Faltavam-lhe as pernas e parte da cintura. Estava morto. A sequência de sons que ouviram foi perturbadora: o movimento de cair do corpo, a lanterna batendo e quebrando, o outro guarda gritando de maneira alucinada, e o som dos tiros da arma do policial. Lisi começou a ficar excitada com tudo aquilo, ainda mais porque odiava policiais e queria mais que todos estivessem mortos, enquanto que Joshua não tirava os olhos do rosto vidrado do guarda morto, cuja cabeça havia caído virada para eles.

– Vamos lá! Quero mijar naquele cara sem pernas!

– Tá maluca, porra!? – gritou Joshua, jogando-lhe todas as drogas que tinha – Vou dá o fora daqui!

E assim ele fez, correndo com todas as suas forças na direção contrária dos tiros e do que quer que fosse que tivesse feito “aquilo”. Lisi o observou se afastar, seu tesão diminuindo diante daquele ato. “Covarde”. Ela se levantou devagar, catou cada droga que estava no chão e pôs na sua bolsa com toda calma, como se nada estivesse acontecendo. A sua volta o som de tiros se misturava com o de um ser estranho e alienígena, de impossível descrição para um ser humano conseguir compreender. Assim que ela terminou, sacudiu parte da sujeira da sua roupa surrada e olhou em volta. O som havia sumido, os policiais também. Tudo estava tranqüilo, como se nada pudesse atrapalhar aquela noite, e ela nem lembrava mais do que tinha visto. Sentou confortavelmente num banco próximo e puxou um cigarro de maconha mal enrolado, ascendendo-o enquanto tentava lembrar o que ia fazer antes do Joshua ter fugido.

– Lembrou? – perguntou um homem, sujo e fedido, mais parecendo um monte de sujeira que um mendigo, que surgiu de repente na frente dela.

– Porra! – gritou assustada, largando o cigarro. Ela fez menção de se abaixar, mas o cigarro agora estava no que deveria ser a boca do mendigo. Ela olhou-o perplexa, mas curiosa. “Como diabos…”.

– Mas ele sempre esteve aqui. – continuou o homem, com um sorriso impossível e com a cabeça meio encurvada. Sua voz lembrava a de um personagem de um filme, ela não conseguia lembrar de qual, até que ele, mais uma vez, respondeu por ela – Quem saber de um tal gato… Com uma tal Alice como protagonista…

– É… Verdade… – ponderou Lisi sem muito entusiasmo, ignorando completamente o fato daquele homem ser capaz de ler seus pensamentos.

– Você não está com medo… – falou o homem triste, quase chorando – Por que não está?

– Dá pra me devolver a minha maconha? – levantou-se irritada e com a mão estendida. Quando o fez, percebeu que o homem não deveria ter mais de um metro e meio, estando bem abaixo da sua grande altura.

– Ah! – respondeu-lhe com uma voz curiosa, já totalmente liberta do sentimento triste – Entendi…

Então um vento forte passou por eles. Lisi sentiu toda a imensidão do odor horroroso daquele homem e pensou como ele poderia estar vivo. Era uma mistura de tudo que ela mais odiava e mesmo assim conseguia ser mais odioso. Mas aquela sensação não apenas a fez tomar ciência da real presença que estava na sua frente como também livrou sua mente completamente do efeito nublado que a droga estava causando. Ela se sentiu fraca e impotente como sempre se sentia quando não estava sob o efeito de algum alucinógeno, e num movimento instintivo protegeu os ombros do frio. Ela olhou para o homem pela primeira vez com real interesse e sentiu-se diante de algo irreal. Então o cigarro de maconha se materializou instantaneamente na sua boca, fazendo-a ter uma enorme ânsia de vômito quando sentiu o gosto dos lábios do homem nele. Ela se largou no chão e pôs toda a bebida que tinha ingerido na festa, duas horas atrás. A ânsia foi tamanha que ela acabou vomitando um pouco de sangue e sua bexiga não suportou. Ela teve a certeza que se tivesse almoçado ou jantando com certeza também o teria posto para fora pelo orifício que restava.

Fraca, suja e impotente, ela tremeu violentamente quando outra rajada de vento a acertou direto no rosto carregando todo o odor daquela criatura, que se abaixou para olhá-la em seu estado mais deplorável.

– Eu senti o cheiro da sua excitação ainda há pouco… – a criatura falou puxando algo que estava atrás dela para perto – E eu gostei. – completou mostrando a cabeça decepada do policial que estava com a lanterna.

Lisandra Sunshine foi encontrada morta no dia seguinte dentro de uma lata de lixo. A autopsia afirmou que ela morreu de medo e dor, não antes de ter sido molestada sexual por sua própria perna decepada. Um lasca de sua unha foi encontrada alojada na base do seu coração. Joshua nunca mais fora visto desde então.

Este Conto pertence a Tio Lipe “Cavaleiros” e faz referência ao RPG “Feiticeiros da Trilha da Noite”, jogo by Fórum ambientado numa realidade alternativa do Mundo das Trevas e de Mago, a Ascensão. O sistema usado é uma mistura de FATE com Mago.

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